E se eu esquecer que vivi? #06
“Você deve saber que a nossa correspondência é meu jeito de me agarrar à vida, fazer anotações sobre ela e assim preservar alguma parte da minha — de resto quase inútil, ou até completamente inútil — existência neste planeta que se degenera rapidamente…” — Belo mundo, onde está você está, Sally Rooney.
Memórias, memórias e mais memórias — principalmente em fotografias. Sinto que elas gritam aos meus olhos por um espaço no meu cotidiano. Não de forma autoritária, mas carente.
Faz cerca de dois anos que excluí aquele app de fotografias, o famosinho com o símbolo de uma câmera. Nele, eu costumava fazer um dump mensal de tudo o que aconteceu no meu mês e que me deixou feliz. Era quase um diário em imagens.
Eu precisava dessas imagens como lembrete. De que eu vivi. De que fui feliz. Ainda preciso dessas imagens.
Mas algo começou a me incomodar. Reparei que, quando esquecia de registrar um momento, me sentia culpada — como se fosse meu dever ter algo a postar no final do mês. O que antes era divertido se tornou um fardo. E decidi sumir daquela rede.
Em setembro do ano passado, eu estava viajando com amigos quando me veio um pensamento do nada:
“Puta merda, não quero esquecer desse momento.”
Não quero esquecer dos pequenos detalhes: das brincadeiras, das danças, de quando fingimos ser influencers fazendo uma tour pela mochila de viagem, e das conversas bobas numa pracinha à noite, com uma estátua de um mini Cristo Redentor no meio.
Não quero esquecer.
Mas o problema é que eu esqueço. Esqueço fácil. A lista das dezenas de milhares de coisas que já esqueci só aumenta. É assim que a vida funciona: o esquecimento faz parte dela. Mas isso não significa que não tentemos lutar contra.
Tenho uma conta no Skoob para lembrar dos livros que já li — mesmo que não me lembre mais de suas histórias.
Tenho uma no Letterboxd, criada no dia 1º de janeiro deste ano, porque ainda me corrói não lembrar qual era o filme da minha infância com um skatista chamado Leon, que tinha dreads coloridos no cabelo.
Sonhei com esse personagem. Mas não posso mais encontrá-lo.
E fiz um diário de fotos no meu caderno da vida.
Alguns já devem estar familiarizados com esse termo: “caderno da vida”. Um espaço onde colamos pequenos souvenires, escrevemos coisas aleatórias, registramos momentos especiais.
Pensei comigo: por que não fazer um registro mais constante da minha vida?
Assim que voltei da viagem com meus amigos, iniciei meu diário de fotos
Algo que me perturbou imensamente — e foi uma forte influência nessa decisão — foi perceber que eu não tinha nenhum registro da minha vida anterior a 2020.
O que eu possuía no Orkut, Facebook e Instagram... se foi.
Anos da minha vida desapareceram. E tudo bem — milhões de pessoas viveram suas vidas sem guardar cada pedacinho delas. Mas não deixa de incomodar.
Minha memória, muitas vezes, é confusa, embaralhada. Imagino que a de todos seja, de certa forma. Às vezes, não sei mais o que foi sonho, o que foi real, o que foi cena de um livro que imaginei com muita intensidade.
Tudo se mistura. E sinto que já não sou capaz de relembrar em voz alta um momento vivido com alguém — talvez ele nem tenha acontecido.
É terrível não poder confiar na única coisa que faz você ser... você.
Então, me sirvo das fotos.
“Louise tende a tratar o passado com ambivalência, como se fosse uma casa vazia pela qual ela passeia, mas não leva móveis para dentro. E, no entanto, as paredes de sua casa estão repletas de fotografias de seus pais, irmãos e do falecido marido, mas especialmente de seu filho, Paul, que retratam sua infância até o presente próximo.
Uma fotografia representa o passado sem trazê-lo à vida. Uma fotografia dá forma à história; ela nos permite criar uma paisagem de sentimentos, suprimindo qualquer outro detalhe emocional que seja ingovernável. Uma fotografia é uma escada que retrocede no tempo, uma escada que podemos afastar quando quisermos. Com as fotografias, podemos obscurecer o passado tanto quanto iluminá-lo.” — One Woman’s Memories, Billy-Ray Belcourt
Apoio-me nas fotografias — mesmo sabendo que elas podem me enganar.
Recentemente, surgiu uma trend sobre o "POV de registrar um aniversário", algo como: a importância de filmar o outro lado. Nela, os aniversariantes pegam as câmeras que estão lhes filmando e viram para registrar os convidados — para guardar a memória como os próprios olhos enxergaram.
Isso me lembrou um episódio magnífico da última temporada de Black Mirror, chamado Eulogy (T7.E5).
No episódio, o personagem principal recebe uma caixa contendo uma tecnologia usada em funerais: ela reúne memórias de várias pessoas sobre o falecido e cria uma “eulogia sensorial”. Essa tecnologia permite que o usuário entre literalmente dentro de fotografias antigas e reviva momentos esquecidos.
O episódio é extremamente emocionante — como quase tudo que fala de arrependimento e luto. E o Paul Giamatti no papel principal é um grande acréscimo para a narrativa.
Mas tem uma cena em específico que quero me atentar.
Durante uma das viagens a uma fotografia, o personagem tem dificuldade de lembrar quem tirou aquela foto. Ele está no meio de um quarto e sempre evocou essa memória como se estivesse sozinho — mas claramente não estava. Pouco depois, relembra todo o contexto.
Mesmo com fotografias, nossa mente prega peças.
Muitas vezes, esquecemos quem estava conosco, onde estávamos, o que fizemos entre uma foto e outra.
Existe um buraco negro entre um clique e o próximo.
No último sábado ministrei uma aula sobre o termo Flashbulb memory — uma lembrança altamente detalhada, vívida, sobre um evento surpreendente ou significativo na sua vida. Essas lembranças tem como principal aspecto a sua capacidade de serem lembradas com grande riqueza de detalhes, como em uma fotografia. E por isso recebe esse nome.
(O flashbulb seria a lâmpada que produz o flash para a fotografia ser tirada)
Esse fenômeno geralmente está ligado a eventos significativos ou emocionalmente carregados. Essas memórias são tratadas na psicologia como memórias autobiográficas: o foco não é no evento em si, mas na forma como você o vivenciou.
Mesmo que você se lembre de uma notícia chocante, o que sua mente guarda é como você se sentiu ao recebê-la. Os psicólogos dizem que, mesmo quando uma pessoa se lembra de um evento com muitos detalhes, essas memórias não são totalmente exatas.
Mesmo os detalhes mais vívidos podem ser distorcidos.
Nunca poderemos confiar completamente na nossa cabeça.
Já aceitei essa realidade, mesmo que tente lutar contra ela. As fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre a vida, e nada são mais do que miniaturas da realidade que tentamos nos apropriar.
Outra coincidência sobre fotografias aconteceu este mês.
Faço parte de um clube que funciona como uma hidra: A cada mês um subgrupo é criado em paralelo ao original. Recentemente criamos o “soundclub”, onde escolhemos álbuns de música, ouvimos e depois discutimos.
E qual foi o primeiro álbum selecionado? Ele mesmo: DeBÍ TiRAR MáS FOToS do Bad Bunny.
(Capa do álbum)
Passamos cerca de três horas conversando sobre as músicas.
Na faixa que dá nome ao álbum, Compartilhamos vídeos de quando éramos crianças e fotos de quando éramos bebês. Louvamos os nossos pais e avós que registraram esses momentos. Choramos ao lembrar dos parentes que só estariam agora ao nosso lado em fotografias.
E, dois dias depois, criamos mais um grupo, o Fotoclube kkkkk
Um dos integrantes compartilhou um vídeo do fotógrafo recém-falecido Sebastião Salgado, falando sobre o ato de fotografar na sociedade atual:
"O que nós estamos fazendo com os celulares não é fotografia. É uma nova linguagem de comunicação. As pessoas fazem para se comunicar, para enviar umas para as outras, e depois isso se perde. Esse arquivo não é importante para elas. As pessoas tiram muitas fotos, daí escolhem umas, deletam outras e, quando trocam de telefone, perdem essas imagens.
Fotografia é outra coisa, fotografia é memória. É aquela de quando o seu pai e a sua mãe o fotografaram quando você era bebê, levaram o filme para revelar e fizeram um pequeno álbum. E essa foto é a sua vida.” — Sebastião Salgado
Ficamos com isso na cabeça. Queríamos um espaço onde não fosse tudo performance.
Um lugar que incentivasse a tirar fotos que não desaparecem em 24 horas.
Fotos que despertam memórias.
Que registram histórias novas.
Não sei se vai funcionar. Estamos na primeira semana. Mas, até aqui, tem sido divertido. Estamos interpretando o mundo à nossa maneira — e compartilhando uns com os outros.
“Por meio das fotos, cada família constrói uma crônica visual de si mesma — um conjunto portátil de imagens que dá testemunho da sua coesão.” — Sontag (2002)
Quando tiro uma foto, estou constantemente dizendo a mim mesma:
Essa sou eu.
É isso que eu gosto.
É isso que eu fiz.
É isso que eu vivi.
Eu vivi.
Tenho medo. Um medo imenso de esquecer por que estou aqui, nesta vida.
E, quando tudo fica nublado, as memórias me servem como uma âncora.
“Todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo.” — Sontag (2002)
BELCOURT, B.-R. Coexistence. London: Penguin Group, 2025.
ROONEY, S. Belo mundo, onde você está. São paulo: Companhia das Letras, 2021.
SONTAG, S. On Photography. London: Penguin, 2002.